sexta-feira, 3 de setembro de 2010

DESGRAÇA

Portugal tratou sempre mal os portugueses. "País padrasto, pátria madrasta", escreveu João de Barros, o imenso autor das "Décadas." Poucos ou ninguém o lêem. No entanto, Barros é um dos maiores entre os maiores. As "Décadas" contêm tudo o que é género literário, numa cosmovisão absolutamente invulgar. Foi maltratado, como os portugueses maiores. As classes dirigentes nunca apreciaram quem as superasse, em inteligência, prospectiva e sonho. Camões morreu cheio de fome, desprezado pelos que mandavam e pelos que obedeciam cegamente. O poeta era tido como um vagabundo, depois de ser considerado um arruaceiro e um brigão sem emenda.

"Vais ao paço, pedir a tença / e pedem-te paciência", retratou-o Sophia, com o coração feito lágrimas, num dos grandes poemas consagrados a Camões. As classes dirigentes desdenham-nos. E nós vamo-las enriquecendo. Éramos menos de um milhão quando o alvoroço da aventura, mas, também, a fome, nos embarcou em cascas de nós. Heróis escorbúticos sem eira e de pouco beira, porém com uma valentia que, hoje, nos causa espanto.

Fomos por aí fora e fizemos um leito de nações. Dormimos com a preta, com a parda, com a chinesa, com a índia, com tudo o que era mulher e saciasse a nossa sede de sexo, de calor humano - de rações, por escassas que fossem, de ternura e de braços nos abraços. Mal ou bem, pertencemos a esta estirpe: guerreiros e santos, mais guerreiros do que santos, caldeámos o ser na violência, na malandrice e na poesia.

Aqueles que sempre nos destrataram, têm-nos enviado, ao longo dos séculos, para paragens longínquas, a fim de defender "a pátria." Não era a pátria que defendíamos: eram as roças dos outros, os interesses dos outros, a fortuna dos outros. Nem, sequer, com a glória ficávamos.

Dependuravam-nos, e nos peitos dos pais cujos filhos haviam morrido sem saber rigorosamente porquê, umas medalhas absurdas, e davam-nos uns abraços sem honra, nem grandeza nem glória. Fizemos, em todas as áfricas onde estivemos, o que se faz nas guerras: matámos, estropiámos, cometemos barbaridades inconcebíveis. E fomos mortos, estropiados, perdemos o viço da juventude. Para quê?

Depressa nos esquecemos dessa saga de misérias. E, até, desprezámos aqueles que tinham lá estado, ou esquecemos os mortos que lá tinham permanecido, os nomes perdidos, as idades perdidas, as vidas perdidas. Portugal trata mal os portugueses. Os portugueses são os primeiros a tratar mal os portugueses. Portugal não é uma entidade abstracta: somos nós todos, naturalmente uns com maiores responsabilidades do que outros.

Não nos gostamos, essa é que é essa. O despeito, a inveja, o ciúme conduz a tudo o que há de pior no ser humano. E o português médio possui uma razoável dose daquelas maleitas. É endémico. E as coisas estão cada vez piores. Reparem no caso Saramago. Odiavam-no porque era famoso, rico, e não escondia as opções morais e ideológicas que o tinham formado. As reticências repugnantes que certos articulistas (para já não falar em políticos) apõem à obra do grande escritor são pequenos indícios da nossa pequenez. Disseram tudo do homem, chegaram a entrar na intimidade e nas decisões de carácter particular por ele tomadas. Mentiram, caluniaram descaradamente. Dois medíocres assanhados chegaram, um a impedir que fosse candidato a um prémio europeu; outro a promover a ideia tolíssima de se lhe retirar a nacionalidade.

É gente deste jaez e estilo que nos tem governado, séculos e séculos a fio. Contra esta imbecilidade generalizada, com um esforço inaudito e enorme desperdício de energias se têm oposto todos aqueles que, através da palavra e dos actos, têm, realmente, desenhado a fisionomia cultural, ética e moral do País.

E chega a ser confrangedor o nível das elites actuais. Tenho assistido, através das televisões, a parte das sessões que o PSD tem promovido, como cursos de verão, em Castelo de Vide. É mais do mesmo. Surpreendente é o facto de Marcelo Rebelo de Sousa ter considerado como "social-democrata" a política de Pedro Passos Coelho. Não sei, gostaria de saber, se a história da social-democracia europeia figura naqueles cursos. Acaso um ou dois preopinantes saiba do assunto. Nem lhes interessa dilucidar o problema. É nesta "pérfida embrulhada", para citar outro português maior, Jorge de Sena, que vamos sobrevivendo. Omissão, mentira, embuste, cambalhotas intelectuais. E não é apenas José Sócrates o paladino destas tropelias.

Há, claramente, uma escassez de pedagogia. Um afã doentio do poder pelo poder. Um inquieto corrupio pela expectativa da nova distribuição de prebendas. Eles não se interessam por nós. Temos de fazer com que eles entendam que estamos cansados de os aturar. E temos, nós próprios, de entender que há alternativas a esta desgraça que nos não abandona.

B.B.

3 comentários:

J.G. disse...

Consta que o sr. Carrapatoso - um exemplo puro de "liberal à portuguesa" que deve provocar poluções nocturnas nos alunos da "universidade" que sonham em ser como ele, um dia, passado o excitante ciclo da carne assada - passou por Castelo de Vide. Mais vão passar: Francisco José Viegas (o proto-ministro da cultura de Passos), António Pinto Ribeiro (conhecido profissional do comissariado exposicional português e, pelos vistos, um homem sempre com os olhos postos em qualquer futuro), Rodrigo Moita de Deus (este, por definição onomástica, está em toda a parte) ou Guilherme Oliveira Martins que, por natureza, representa o regime de que Passos jamais se conseguirá livrar. Na "universidade" está, nomeadamente, um miúdo de quinze anos (quando a "universidade" começou tinha apenas catorze) como este futuro "quadro" aqui descrito. «As consolas tiram-me tempo que posso dedicar à vida activa na sociedade (...) Ser um bom ser humano e um bom político. Sempre tive um interesse especial pela política e aqui aprende-se a ser político com grandes nomes do partido.» Com certeza (e que bonito!) que vai ser tudo isso - basta-lhe olhar para "os grandes nomes do partido". Entretanto sugiro ao menino que medite neste post de Tomás Vasques. Devia ser de leitura obrigatória na "universidade" e sempre se poupava em videirinhos.

Adenda: Para aqueles que vão falar em ressentimento ou em dores disto e daquilo, é evidente que, conhecendo a gente em causa (esta portuguesinha gente em geral e não este ou aquele em particular) e escrevendo o que escrevo, só se fosse tolinho de todo é que alimentaria "esperanças". Mas "esperanças" de quê e para quê? De ser complacente com o mesmismo medíocre que tudo governa e não necessariamente a partir de um governo? Não. Os meus interesses são bem mais tranquilos e não concorrentes com videirinhos. Para além disso, sou radical nas minhas opiniões e isso não convém aos bons costumes e às boas almas que velam - e velarão - pelo bem-estar geral no poder, nos media, nos blogues, na oposição ou no raio que os parta, à "moda antiga" ou à "moda moderna", e que, para nossa e deles perpétua desgraça, se levam a sério. Estou - quase meio século dá destas tranquilidades caóticas - como o poeta, em Creta com o Minotauro.

Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.

Anónimo disse...

GOSTAVA TANTO DAS HISTÓRIAS DOS CORNOS E ETC...

E AGORA NADA DISSO...

Anónimo disse...

ultima novidade o peter da camara preparasse para cumprir uma promessa eleitoral...

um lugar à muito prometido