sábado, 24 de abril de 2010

FOI HÁ 36 ANOS


Foi por uma fresta que a liberdade entrou. Sem pedir licença, o frémito, insurgente, corrompeu a noite da ditadura. As mil e uma noites do regime amadureceram em soberba, mas caíram pela pureza da poesia nas ruas de Lisboa, numa aurora que tardava - que sempre se demorou - mas que se ia adivinhando na alma de alguns. E Portugal dormia. Era tarde. Era noite. Era uma noite como qualquer outra na longa noite da ditadura. Estávamos cansados. Dormíamos.

A palavra escrita, a palavra cantada emergiu do rádio. Músicas e palavras que ficaram no imaginário de todos, mas que poucos escutaram em directo e muitos menos entenderam o real impacto daquelas senhas. A madrugada foi insuflando o caminho para a alvorada, para o despertar, para a aurora de um novo tempo. Mas o país dormia. Cansado, talvez. Uns resignados. Outros sonhavam. Todos repousavam em si, sobre si, sobre este Portugal amordaçado e cansado, sobre perene tristeza e desesperança. Lá fora estava escuro. E estávamos cansados. Esta seria a última noite assumidamente... noite. Um novo Portugal zurzia por entre o postigo que se estava a abrir na derradeira noite da ímpia obscuridade, do torpor que se preparava para se renegar a si próprio e deixar cair a mais longa ditadura europeia do século XX. Os capitães, os soldados, toldados de dúvidas e medos tentariam levar a cabo a tentativa de derrubar o governo de Marcelo Caetano e colocar o ponto final a quase 50 anos de Estado Novo. Sim, esta era a madrugada. Era esta a hora. Era a derradeira noite. Era tempo do medo recolher as garras.

Portugal dormia.

Era tarde.

Estávamos cansados.

Esta é a madrugada que eu esperava

O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio

E livres habitamos a substância do tempo

(Sophia de Mello Breyner)

24 de Abril de 1974. Às 22.55 é emitida a primeira senha que desencadeará a acção militar que levará ao fim do regime. As palavras soaram na noite pela voz de João Paulo Dinis aos microfones dos Emissores Associados de Lisboa: “Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74 «E Depois do Adeus».

Era o primeiro sinal para o início das operações militares a desencadear pelo Movimento das Forças Armadas.

Quis saber quem sou

O que faço aqui

Quem me abandonou

De quem me esqueci

Perguntei por mim

Quis saber de nós

Mas o mar

Não me traz

Tua voz...

Em silêncio, amor

Em tristeza e fim

Eu te sinto, em flor

Eu te sofro, em mim

Eu te lembro, assim

Partir é morrer

Como amar

É ganhar

E perder.

[...]

(Paulo de Carvalho)

Ninguém suspeita. Ninguém sabe. Ninguém poderia saber. Portugal dorme. Cansado.

Madrugada de 25 de Abril de 1974. Meia-noite e vinte. Lê mos que nos estúdios da Rádio Renascença, na Rua Capelo, ao Chiado, Paulo Coelho, ignora os compromissos assumidos pelos seus colegas do programa Limite, e lê anúncios publicitários. Apesar dos sinais desesperados de Manuel Tomás, que se encontra na cabina técnica acompanhado de Carlos Albino, para sair do ar, o radialista prossegue paulatinamente a sua tarefa. Após 19 segundos de aguda tensão, Tomás dá uma “sapatada” na mão do técnico José Videira, provocando o arranque da bobine com a gravação que continha a célebre senha: a canção Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso rasga a noite.

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena

Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade

O povo é quem mais ordena

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo

Em cada rosto, igualdade

Grândola, vila morena

Terra da fraternidade

Terra da fraternidade

Grândola, vila morena

Em cada rosto, igualdade

O povo é quem mais ordena

[...]

(Zeca Afonso)

Irreversível, agora.

Portugal dormia. Nos quartéis, porém, ele estava acordado.

Expectativa.

Medo.

E a história serpenteava pelas ruas. A noite consumada era feita de poesia. A poética marcha. Lá fora, na rua, o país avançava no rodado dos blindados. Os heróis anónimos começaram a rasgar espaço nos livros de história.

Amanheceu em Portugal. O país acordou. Ninguém cansado.

Havia gente e cravos na rua.

Bom dia, liberdade.

Bom dia, sonho.

Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida

como outra coisa qualquer

como esta pedra cinzenta

em que me sento e descanso

como este ribeiro manso

em serenos sobressaltos

como estes pinheiros altos

que em verde e oiro se agitam

como estas árvores que gritam

em bebedeiras de azul.

[...]

(António Gedeão)

OS VÍCIOS DO SALAZARISMO

Sonegadas as palavras, retraídos os sonhos, freados os ímpetos. Os arquivos remetem-nos para um tempo habitado por estranhos feitos, espúrios métodos, coexistindo nesse hiato de bizarrias várias, o hiato das liberdades. A imprensa teve as rédea demasiado curtas. Jornalistas e directores que ousavam o caminho da afronta depressa eram “referenciados” e pressionados a calarem-se. Nas redacções abundavam as provas cortadas pelos Serviços de Censura, páginas carimbadas a azul e a vermelho. Alguns cortes eram cirúrgicos, amputando nomes proibidos, extirpando factos. Outros carimbos anunciavam o corte integral do texto, profano para o bem de uma nação que se queria mantida na ignorância, como se o dia-a-dia não fosse prova suficiente para quem quisesse ver. Tudo era alvo da atenção dos censores.

Refazer jornais à última hora era uma das ocupações das redacções. Tentar meter notícias sem chamar a atenção da censura era talento que se ia apurando à secretária. Dizer sem o dizer. Saber ler nas entrelinhas foi um exercício que os leitores foram aprumando em ditadura. Era nessas entrelinhas, naquela vírgula, naquele sinónimo e, sobretudo, no que não era escrito, que as notícias se escreviam.

Eram dias de faz-de-conta. Na política, as eleições eram um artifício. Não eram livres. Todos o sabiam. Mas faziam-se e cumpriam-se no faz-de-conta. Ai de alguém que exprimisse o contrário. Basta olhar para um recenseamento eleitoral de 1966 e ver quem eram os eleitos para votar. Mas a prova já tinha sido feita bem antes, quando o general Humberto Delgado afrontou o Salazar, candidatando-se à Presidência da República, contra o candidato do regime, Américo Tomás. As eleições de 1958, sob forte suspeita de fraude, ditaram-lhe a derrota. Seria de esperar algo de distinto? Mas a afronta não foi esquecida. O general foi assassinado por agentes da PIDE em Villanueva del Fresno, Espanha, em 1965.

O país dos brandos costumes e das virtudes propagadas aos ventos tinha terríveis vícios privados na cúpula do regime. 

N.F.

1 comentário:

J. disse...

Salgueiro Maia foi um dos melhores interpretes do 25 de Abril enquanto abrir a porta de Portugal à democracia, teve coragem quando foi necessário tê-la, restaurada à democracia voltou ao seu quartel, deu tudo quanto tinha e nada pediu em troca. Não fez discursos, não pretendeu tutelar a vontade do povo, não assinou artigos como capitão de Abril, fez o que tinha de fazer, foi o que tinha de ser.

Por ser quem foi ficou esquecido, representava a coragem que uma direita apeada do poder absoluto nunca perdoou, chegando ao ponto de um Presidente da República dessa direita o ter desprezado ao mesmo tempo que pagava os serviços prestados de um “pide”, foi mesmos promovido do que outros “revolucionários” mais vistosos e que os oficiais da direita depois de retomada a normalide. Foi esquecido por uns e perseguido por outros. Hoje todos os amamos mas quantos não o esqueceram?

Ainda hoje há quem assine artigos de jornal como “capitão de Abril”, quem decida quais os nomes dos oficiais de Abril que devem constar nas estátuas, quem cobre ao país o favor de lhe ter ajudado a conquistar a liberdade. Salgueiro Maia nunca o fez, não foi comandante de nenhuma região, não foi brigadeiro nem general, não assinou artigos de jornais, não andou nas comendas presidenciais, foi igual ao seu povo.

Não impôs ideais ao país, não deu raspanetes à democracia nem pretendeu decidir que democracia que havia de dar, mas deu um exemplo superior ao que qualquer outro deu, serviu o seu país sem pedir nada em troca porque dar a liberdade a um país é um dever e não um favor, servir o povo é dar sem esperar nada em troca.

Um exemplo que muitos dos seus companheiros de armas e uma boa parte da classe política não conseguiram ou quiseram ver. Salgueiro Maia foi melhor do que todos eles e do que todos nós. Por isso merece o reconhecimento unânime de todos, incluindo dos seus adversários, até do” presidentezinho” que temos que em tempos deu ao “pide” a pensão que recusou a Salgueiro Maia.

Este país deve muito a Salgueiro Maia, muito mais do que alguma vez lhe poderia ter dado em vida, deve-lhe a eternidade que só os heróis merecem. Por isso acho que há muito que os seus restos mortais deviam estar no Panteão Nacional e o novo aeroporto de Lisboa devia ostentar o seu nome, para que todos os que neste país abrem asas o façam porque um dia houve um Salgueiro Maia.